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Ricardo Líper

A Alegre Vida de
Tio Camilo

PERSONAGENS

Camilo – Próspero advogado de mais ou menos 60 anos. Meio gordo, com uma
barriguinha querendo se tornar proeminente. Baixo ou não muito alto. Careca.
Julinho – Magro. Bem branco, de cabelos pretos. Em torno de vinte e poucos anos.
Rosto, se possível, cumprido e feioso.
Garoto – 17 anos e alguns meses. Branco e alourado. Beleza evidente. Mais ou menos
musculoso. Usa tênis, calça branca e camisa listada branca com grossas listas
horizontais azuis marinho.
Cenário:
Apartamento que mostra a prosperidade do proprietário. Do lado direito fica
um bar inteiramente fechado que uma pessoa, dentro, se mostre, para a platéia,
apenas da cintura para cima. Um sofá. Um móvel encostado na parede de fundo cheio
de pequenos objetos. Bibelôs. Estátuas. Vasos. Objetos de bom gosto ou vistosos que se
espalham por todos os móveis. Posters de artistas de cinema (Marlon Brando, Greta
Garbo) e, cartazes de filmes, nas paredes. Um espelho em uma saleta de entrada que
pode ser apenas sugerido sem ser visto pelo público.
Antes de abrir a sala de espetáculos, um senhor de paletó e gravata impecáveis
espera como se fosse um espectador comum. Um rapazinho, como se o estivesse
seguindo, vai até ele e conversa em voz baixa, mas em um tom suficientemente
audível. Os outros espectadores ouvem.
O senhor – Você é de menor. Já disse que não.
O garoto – Só uma vez. Um pouquinho.
O senhor – Não. Não. Não. De jeito nenhum. Vou falar para o seu pai.
O garoto – Não conto a ninguém.
O senhor – (Tentando ser conveniente. Rindo, meio sem jeito, para que os
outros espectadores não notem) Já disse, menino. Você é menor. Você quer me
complicar?
O senhor não entra pelo palco. Some, com o menino o assediando atrás e entra
pela porta do apartamento, normalmente quando a cortina abre.
entrar, o telefone toca várias vezes. Ele abre a porta lentamente, sem pressa, coloca
uma pastinha em uma mesa logo à entrada, ajeita o cabelo imaginário, e depois, já na
sala, atende.
Voz de mulher de meia-idade – (Todos os telefonemas os espectadores ouvem
porque ele deixa sempre o telefone em viva voz de forma que se estabelece um diálogo
com o personagem que lhe está telefonando. Ele continua fazendo algumas coisas e o
aparelho é como se fosse uma pessoa) Dr. Camilo, desculpe lhe incomodar na sua
residência.
Camilo – A senhora é uma cliente especial. Recebi o uísque. De excelente
qualidade.
Voz – Tenho que pagar?
Camilo – Infelizmente é assim. Eu lhe disse: presenteei. Brasil, minha senhora.
Camilo – Se não p r e s e n t e a r seu processo não anda. Não me disse que
conhece o governador? Um cartão dele também é formidáaaaaavel. (O formidável,
principalmente, as últimas letras, enchem o teatro. Abre os braços num gesto largo)
Eles desabotoam as calças. E, a senhora sabe, desabotoou, tem de arriar. Quem não
quer arriar não desabotoa.
Voz – Fico chocada.
Camilo – Ora, D. Gertrudes, a senhora está chocada coisa nenhuma. Só me
procurou por isso mesmo.
Voz – Não é com o senhor. Estou estarrecida com o país em que nós vivemos.
Camilo – Sabe que eu resolvo. Sou realista. Pense a senhora o que quiser só vai
conseguir que ele notifique sua inquilina se pagar. E tem mais, se não pagar, ela paga
para não ser encontrada. (Argumentando) É um aluguel comercial, ela tem interesse
em ficar pagando barato e compra o tempo adiando a notificação. Tem de dar a
merenda do rapaz, D. Gertrudes. Mande seu filho. Aquele que soltei quando foi preso
por causa de maconha.
Voz – Ele está totalmente recuperado. Pode acreditar.
Camilo – Sei. (Não acreditando) Recuperadíssimo. Peça a seu filho que vá
conversar com o Oficial de Justiça. Uma senhora de respeito (tosse um pouco) não tem
jeito para isso. Seu filho vai longe. É um vencedor. Talvez num futuro próximo
teremos um deputado. Tenho certeza que eles se entenderão muito bem.
Voz – (Contente). Já depositei parte de seus honorários.
Camilo – Sei que a senhora já depositou. Já estamos no final. Qualquer coisa
pode ligar. Desliga o telefone sempre no viva voz. Ri. Ensaia dançar como se estivesse
dando passos de teatro de revista. Termina no espelho. Dá um rodopio. Ajeita uma
mecha do cabelo imaginária. O telefone toca.
Voz masculina – Você comprou o vestido?
Camilo – Não.
Voz Masculina – Ainda dá tempo.
Camilo – Pensei em mandar fazer. O problema é que sou robusto. Não estou
preocupado em ficar bem. Quero é participar. O meu forte vai ser a dança. Vou ter de
arranjar um por aqui.
Voz Masculina – Vou todo de preto. Veludo.
Camilo – Você vai morrer de calor, entidade do mal. Deixe de ser louco. Como
é que pode um médico ginecologista de renome internacional ir vestido de condessa
Drácula. Ou é mulher morcego? Ano passado vocês me arranjaram aquele fantasia de
odalisca. Encheram de pedrarias, me arranharam todo. Durante uma audiência, o
juiz me perguntou o que eram os arranhões e eu disse que foi o gato de minha
sobrinha. Ele está meio esclerosado. Falou quase a audiência toda sobre unhas de
gatos. O homem tem mania por felinos. Eu não sabia.
Voz Masculina – É hoje à noite.
Camilo – Então falta pouquíssimo tempo. Não ensaiei nada. Não tenho tido
tempo. Na hora dou um jeito. Só chego lá depois de uma hora da manhã. Hora de
gente esquisita chegar. (Desliga).
O telefone toca duas vezes. Ele não se abala. Deixa tocar. Coloca o som bem
alto. Ouve-se Eu Dei (Marília Barbosa.).Tira o paletó e a gravata. A parte da camisa
que não aparece quando ele veste o paletó é extremamente florida. Vestido o paletó, só
aparece o branco normal de qualquer camisa. Quando ele tira o paletó ela se
transforma em uma camisa florida, colorida ao extremo. Dança como se estivesse
dublando a música. O telefone toca de novo. Clica o viva voz e desliga sem atender
dançando. Depois que a música chega ao fim, ele liga o telefone que toca, quase de
imediato, de novo.
Voz de velha - Esforçando-se por aparentar ser de uma classe social alta –
Desejo falar com o Dr. Camilo?
Camilo – Alô? Quem está procurando por ele?
Voz – Clarisse, sua avó.
Camilo – Sou eu. Séculos sem lhe falar. Não reconheceu minha voz? A última
vez que telefonou foi para me pedir para arranjar um emprego para sua afilhada.
Como vai ela?
Voz – É bem verdade que não tenho lhe procurado muito. Estive adoentada.
Minha afilhada está muito bem. Sempre muito agradecida a você pela oportunidade
que lhe deu.
Camilo – Sei. A senhora é a última das matriarcas. Pode tudo. O que ordena?
Voz – Você sempre foi muito gentil comigo. Estamos passando uma situação
terrível. É o filho de sua tia Senhorinha. Ela se casou com aquele fazendeiro do Rio
Grande do Sul. Homem muito rico e poderoso!
Camilo - Eu sei minha avó.
Voz – Pois é. (Ameaça chorar.)
Camilo – Ele morreu?
Voz – Não. Não. Deus nos livre. Nem sei como lhe dizer. É sobre o filho do
meio. Eles têm três filhos como você sabe. Dois rapazes e uma moça. O mais velho é
uma beleza. Já ajuda o pai na fazenda. Está noivo de uma garota de uma família
muito boa lá do Sul. Parentes até de senadores da República. A filha está nos Estados
Unidos estudando e namora também um médico de lá. Foram em julho para a
América do Norte e ficaram encantados com a família do rapaz.
Camilo – (Um pouco entediado) Sim. Sim.
Voz – Quero lhe falar a respeito do Julinho. Você não se lembra dele?
Camilo – Não. Era muito pequeno quando eles estiveram aqui.
Voz – O Julinho. (Chora).
Camilo – Está doente? O que aconteceu? Foi preso? Eu posso ajudar em
alguma coisa?
Voz – Não. Não. Ele tentou suicídio na semana passada.
Camilo – Está bem?
Voz – É a segunda vez. O psiquiatra disse que no caso dele é comum.
Depressão.
É que ele é assim.
Camilo - (Impaciente e com raiva, batendo o pé no chão) Assim como, vovó
Clarisse?
Voz – Tem esse estilo de vida igual ao seu.
Camilo – (Afastando-se do telefone para ela não ouvir) Mais um na família.
(Sem sair do lugar falando mais alto para ela o ouvir no viva voz) A senhora é
muito espirituosa. Estilo de vida. Entendi. O psiquiatra disse o quê?
Voz – Que aqueles que têm esse estilo de vida (fala devagar as palavras estilo de
vida para sugerir o que quer dizer com isso) é muito propenso a tentar suicídio.
Camilo – Foi isso que ele disse? Competente esse psiquiatra. É gaúcho também?
O Extremo Sul sempre contribuiu para o avanço da ciência no Brasil.
Voz – É psiquiatra de uma cidadezinha próxima da fazenda.
Camilo – Está explicado. Ex-seminarista, talvez? O que posso fazer?
Voz – A última vez que fez essa coisa tomou todos os comprimidos para dormir
que achou. Ficou meio fora de si e disse que queria passar as férias ou morar aí
com você. Não entenderam direito o que ele falava mas, seu nome foi
pronunciado com clareza: (imitando o bisneto) Quero ver, antes de morrer, tio
Camilo. Ele é seu primo mas, confuso, lhe chamou de tio.
Camilo – (Abismado) E ele me conhece?
Voz – Não. Mas sabe que tem um primo advogado de sucesso.
Camilo - Com esse estilo de vida.
Voz – É. (Explicativa) Você sabe, Camilo, as pessoas comentam, vez por outra,
e ele tomou conhecimento que na nossa família.
Camilo – Já tivemos esse problema, uma vez, que sou eu. Não se sabe quantas
vezes ainda teremos de novo.
Voz – Oh!
Camilo – Brincadeira, vovó. A senhora sabe como sou brincalhão. Quem tem
esse estilo de vida gosta muito de brincar.
Voz - Já devem estar aí. Sabíamos que você não recusaria. Viajou com o irmão
mais velho. Não poderíamos deixá-lo viajar sozinho. Só estão esperando sua
resposta. Vão me ligar e aí ele vai lhe procurar. Foi difícil encontrar seu novo
endereço.
Camilo- Gente com esse estilo de vida, se muda muito. Mas não nego nada a
senhora. Estou morrendo de curiosidade de ver meu primo e sobrinho de
consideração. (Desligando a telefone) Vejam só! Numa sexta-feira à noite. Eu
me preparando para ir a uma festa vestido de mulher-gato, me aparece um
veado suicida.
A companhia toca. Toca insistentemente. Ele vai abrir ansioso. É o menino da
entrada do teatro.
Camilo – (Com a porta entreaberta. Segurando a porta para ele não entrar. O
menino passa por debaixo dos seus braços. Corre para dentro do apartamento)
Volte. (Correndo atrás dele) O código do menor proíbe, sua peste.
Menino – E o que eu faço?
Camilo – Tem de esperar fazer 18 anos.
Menino – Faltam vários meses. O senhor não está falando sério.
Camilo – Contando ninguém acredita. Menino, vá embora. Vou falar com seu
pai. Você está me forçando a isso. Esta casa é de muito respeito.
Menino – (Sem dar importância) Você deve é fazer horrores. Aqui vem
marinheiros? E soldados? E se eu vier vestido de marinheiro?
Camilo – Pode se vestir do que quiser. Você é de menor e eu não sou otário.
Rua! (Vai empurrando ele até a porta aberta. Consegue O menino caminha
resistindo um pouco. Consegue pô-lo para fora e tranca a porta. Depois
preparando uma bebida.) Hoje está difícil. (A campainha da porta toca de leve.
Toca de novo. Baltazar abre a porta.)
Júlio – O senhor é Dr. Camilo?
Camilo – Você é o Julinho? Meu sobrinho?
Júlio – Sou. (Camilo sai da porta, recua até o meio da sala com o copo de
bebida nas mãos e ele entra trazendo uma mala, um saco de viagem, uma sacola
e um casaco de frio. Camilo fica parado esperando o outro entrar e colocar
tudo para dentro.)
Camilo – (Olhando detalhadamente ele em pé junto da sua bagagem) Meu
Deus! Você só poderia tentar suicídio! Que óculos são esses? Que roupa é essa?
Estava esperando um gauchão. Um homem enorme. E me aparece isso. Não
sabia que tinha gente, no Rio Grande do Sul, com cara de atendente de pronto-
socorro.
Júlio – (Chorando alto. Com escândalo) Oooooonnnn.
Camilo – (Colocando o copo de bebida em algum móvel. Sem se importar
muito. Cruza os braços e bate os pés no chão impaciente) Tira os óculos que dá
azar. (Como uma tia conselheira) Chorar de óculos dá azar. (Júlio tira os
óculos, mas aumenta o choro.)
Camilo – (Falando rápido. Brigando). Pára de chorar, coisa estranha. Os
vizinhos estão ouvindo. Já dizem que ouvem sons suspeitos vindos daqui. Não
sei o que eles chamam de sons suspeitos.
Júlio – (Aumenta o choro) Oooooooon.
Camilo – (Lentamente se afasta, vira-se, abre os braços) Vem. Vem. O titio não
falou por mal. (Júlio, aos poucos, pára de chorar e aceita o abraço. Abraçado)
Foi só um susto com a sua entrada. (Consolando) Pronto. Pronto. Tem jeito.
Vou dar um jeeeeito em você. Por pior que eles sejam sempre tem uma solução.
Júlio – Desculpe. Estou muito nervoso.
Camilo – Mais um sobrinho. Que coisa linda. Sou o tio oficial do Brasil. E lhe
garanto que são muitos os meus sobrinhos. (Júlio senta no sofá e desarruma a
sacola).
Júlio – Minha mãe mandou para o senhor. (Tira dois queijos e doces da
fazenda.)
Camilo – Elas não perdem a linha. Engolindo sapos. Morrendo, mas tesas.
Mantendo as aparências. Já que mandaram, é ótimo. Comeremos tudo dentro
de poucos dias. Vá mudar de roupa. Leve essas coisas para o quarto. (Júlio
olhando os cartazes e a sala) Não se assuste. Apartamento de veado é assim
mesmo. (Ele está andando em direção do quarto. Pára. Fica parado sem olhar
para trás quando ouve a palavra veado) Apartamento de um homem liberal, de
cabeça sem preconceitos, que transcendeu os limites sociais impostos à
sexualidade. Que leu Freud. Conhece a Europa. Esta melhor assim? (Júlio, sem
se virar, balança a cabeça concordando. Continua a andar para o quarto.
Camilo espera ele sumir e grita). Veado. Dá no mesmo.
O telefone toca.
Voz Masculina – Dr. Camilo?
Camilo – Estava aguardando seu telefonema. É o que já lhe disse pessoalmente.
Você não viu o homem? Metido a conquistador. Cabelo bem penteado, paletó
da moda, óculos escuros de canastrão.
Voz do cliente – Mas doutor. Levar a mulher.
Camilo – Não lhe disse isso. (Perdendo a paciência. Mais rápido. Mais alto).
Você é abobalhado? A não ser que queira. Aí não me meto. Leve sua mulher e
fique olhando pelo buraco da fechadura.
Voz – Não. Não. Deus me livre. Sou um homem decente.
Camilo – Todos dizem isso. Não é sua honestidade que está em jogo. Ele tem
prazer de comer as mulheres dos outros. Só assina o documento se comer. Caso
contrário sempre vai estar doente. Casamento da filha. Em reuniãããão. (o
ããã é mais lento). O que você vai fazer é o seguinte: ligue para uma casa de
“acompanhantes”. Não escolha mulherão. Universitária que trabalha nas horas
vagas para comprar os livros de filosofia. De óculos. Mulher de óculos.
Voz – Por que de óculos?
Camilo – Para o magistrado não perceber que é puta.
Voz – E se ele descobrir?
Camilo – Você já viu puta de óculos? Apresente a ele como sendo sua esposa e
Voz – Ele terminará descobrindo.
Camilo – Aí já assinou. É ela quem leva para assinar. Oriente a moça. assina
primeiro, come depois. Faça isso segunda-feira.
Voz – Não é melhor sexta?
Camilo – Não. Juiz só come mulher casada no início da semana. No final, está
com a família. Vou cobrar um extra por essa orientação. (Dança, cantarolando
um pouco: “Nós somos as cantoras do rádio.”) Júlio aparece na porta do
quarto de short. Pernas magras.
Camilo – Valha-me Nossa Senhora dos Desesperados. É a anti Marlene
Dietrich. Que pernas são essas? Você não abala nem ponto de ônibus de
subúrbio. E tire os óculos. Bicha de óculos dá azar.
Júlio – (Chorando com escândalo) Oooonnnn.
Camilo – Vai chorar sempre a cada coisa que eu lhe digo? (Irritado) Me
responda: você é doente mental. Além de ser assim esquisita, maluca?
Júlio – Ooooonnnn.
Camilo – Você é otário? (Júlio volta para o quarto e trás suas coisas para ir
embora.) Agora está dando uma de menina-moça lá dos Pampas. Aborreceu-se
e vai embora feito uma doida, escada abaixo. Irritada. Nervosíssima. (Toma a
mala, o saco das mãos de Júlio e joga no sofá. Mas nota-se interesse em
explicar-se e um certo tom de doçura.) Só sabe chorar? Vai passar a vida
chorando? Pedindo desculpa por estar vivo? Não sabe rebater. Me chamar de
velho. Barrigudo. Feio. (Noutro tom). Sempre exagere. Mariiiicoooona.
Desabamento de prédio de subúrbio. Mudança de pobre. Múmia asteca. (Júlio
fica pasmo. Camilo o empurra de volta para o quarto). Dê um tempo. Quando
eu disser: entra, você vem. (Espera o pouco) Entra. (Júlio entra. Fica parado
atônito.)
Camilo – Você é a anti Marlene Dietrich. Que pernas são essas? Não abala nem
o fim de linha de. (bairro popular conhecido. Júlio ameaça chorar.) Não chore.
Já viu homem chorar por qualquer coisa? Volta. (Júlio entra no quarto.) Entra.
(Júlio entra de novo.) Você é a anti Marlene Dietrich. Que pernas são essas?
Não abala nem trem de retirantes do Nordeste. (Júlio parado. Camilo irritado.)
Devolva a agressão, porra!
Júlio – Mas você é o dono da casa. Meu primo. Tio por consideração e carinho.
Está me fazendo um favor.
Camilo – Mas não posso lhe maltratar. Devolve a porrada e depois negocia.
Pede desculpa. Dá um risinho. Brasileiro resolve tudo com o risinho. A madame
toda chique, família tradicional, endividadérrima, pedindo ingresso de graça
para ir ao teatro, fura a fila, dá um risinho, ajeita o cabelo e pronto. Você, no
ônibus, encosta na bunda de um negrão. Desculpe. Um afrodescendente de
porte grande. Dá um risinho. Ele vira para você e diz: (Com voz grossa) Eu me
chamo Eliezer. (Júlio vai para o quarto.)
Camilo – Estou pronto. (Júlio entra. Fica mudo. Camilo com fúria.) Você é
horrorosa. Nunca vi, em minha vida, criatura mais sem graça. A janela é
serventia da casa. Pule. Décimo primeiro andar.
Julinho – (Com furor) Bruxa velha. Barriguda. Veado ridículo. Maricona.
Camilo – (Espantado, abre os braços para um abraço.) Vem para o titio, vem.
Você promete. Puxou ao primo. (Júlio querendo chorar e rindo.) Agora sim.
(Abraçam-se.) Vamos dançar. Dançamos lá fora e aqui dentro. Nunca dançou?
Venha aprender. O curso aqui é completo.
Júlio – Curso de quê? (Camilo faz uma careta como resposta.)
Camilo – (Ensinando o outro a dançar. Imitando os passos de um suposto can-
can.) A perna assim. A outra aqui. Vamos virar juntos. As mãos para cima.
(Ouve-se uma música animada o tempo todo em que o curso de dança ocorre.)
Júlio – Para que dançar?
Camilo – Ajuda a liberar as tensões. (A dança é rápida. Caem no sofá. Júlio ri.)
Já está rindo. Então melhorou da depressão.
Júlio – (Sério) Mas eu não gostaria que tudo isso estivesse acontecendo.
Camilo – Acontecendo o quê?
Júlio – Esse negócio.
Camilo – Quer dizer que, lá no Sul, chamam de “esse negócio”. E tomou todos
os comprimidos que achou por causa (Com a boca cheia) desse negócio. Um
negóóóóóóóócio tão bom, meu filho. (Balança-se todo, em pé, com as mãos e os
braços mais arriados do lado do corpo como orangotango. Júlio fica mudo e
olha para o chão.)
Camilo – Você tentou se matar por isso? Não está doente? (Júlio balança a
cabeça dizendo que não.)
– Também aconteceu tudo ao mesmo tempo.
Camilo – Deixe eu dar uma de Pollyanna (Rapidíssimo, mas audível).
Pollyanna. Pollyanna moça. Pollyanna puta.
Camilo – Quem é Pollyanna?
Camilo – Uma menina chata da sub-literatura do início do século que vivia
dizendo que sempre estava tudo bem. Um prédio desabava e ela: (imitando a voz de
falsete de menina chata) Maravilhoso! Tudo ótimo. A vida é linda. Acontecia um
desastre e você ficava cego, sem pernas. Foi a melhor coisa que lhe aconteceu. Agora
você pode ouvir o canto dos pássaros. Pior do que ela só o Pequeno Príncipe. Ouvi
dizer que se casaram. (Entra no quarto. Júlio se encaminha para o móvel da sala.
Pega em vários bonequinhos de plástico. Estatuetas. Olha, detalhadamente, mas
rápido. Coloca uma máscara de borracha, o mais perfeita possível, com a cara de um
político de direita ridículo e muito conhecido. Vira para a platéia. Baltazar aparece na
porta do quarto vestido de Pollyanna. “Vestidinho de xadrez, muito loura e de chapéu
de palha”. Flores no chapeuzinho.)
Veja Julinho como o ar é puro, como o céu é azul. Passarinhos cantando. As
borboletas. Já pensou em perder tudo isso? (Mudando a voz de menina para homem)
Toda menina chata adora borboletas, passarinhos, o sol matinal, o orvalho. a cotovia,
os rouxinóis. Nunca viram um rouxinol. (Abrindo uma janela imaginária. Voltando a
ser a menina.) As estrelas são os olhos desse manto de veludo que é a noite. (Falando
como homem e saindo da janela) Toda menina chata adora estrelas, faz poesia e
chateia com freqüência ou outros. Um amigo meu quando a filha fez uma poesia sobre
o Duque de Caxias, deu-lhe uma surra e nunca mais ela pensou em chatear o próximo.
(Voltando a ser a menina) Vire para o seu pai e diga: sou veado mas só lhe trarei
alegrias. Não é melhor ter um filho veado que um filho ladrão? E o pai gauchão dos
Pampas (rapidíssimo mas audível) Amantes na rua, bigodão, falando grosso, só deu
quando era pequeno. (Imitando a voz do pai) Prefiro um filho ladrão, Tchê!” (Tira
um revolver da sainha de Pollyanna e atira em Júlio, que toma um susto. (Tira a
peruca, o vestidinho) Seu pai tem revólver?
Júlio – Tem.
Camilo – Deu um tiro em você?
Júlio – Minha mãe não deixou. (Camilo entra no quarto. Júlio volta a pegar nos
objetos. Pega em um ou outro e mostra para a platéia. Vira de costas e coloca outra
máscara, de uma pessoa muito conhecida e ridícula, (um político corrupto da época de
encenação da peça) e vira para a platéia, mudo, como fez da outra vez e fica alguns
segundos. Pode, essa ação, ser acompanhada de músicas sugestivas e ridículas como
propaganda política ou introdução de programas de rádio ou televisão conhecidos por
serem vulgares.)
Camilo - (Entra de professorinha. Peruca preta lisa com os cabelos caídos até os
ombros. Óculos de gatinho. Batom vermelho. Terninho feminino cinza. Com voz fina
antipática.) Sr. Júlio? (Lendo uma suposta ficha). Está aqui que o senhor é invertido
sexual. Que maluquice é essa? Que desvio é esse? (Acendendo um cigarro em uma
piteira enorme) Meu filho, quando eu era jovem também tive minhas experiências.
Mas depois descobri que não levava a nada. Quase pulei do vigésimo andar. Descobrir
que a vida tem outros encantos. (Dramática. Muito expressiva. Pegando no queixo de
Júlio) Uma vida plena. Produtiva. Conectada com as energias positivas do universo
para desenvolvermos nossa personalidade harmonicamente. Holisticamente. Estou
tomando um curso de psicologia tetra polimórfica americana. Nós aprendemos a fazer
assim. Venha comigo. (Júlio fica ao lado dela “aprendendo”) Concentre-se. Balance as
mãos em cima da cabeça e grite: “Estou livre”. De novo. Concentre-se. Feche os olhos.
Deixe a energia fluir do terceiro olho para o resto do corpo. Uma luz azul está lhe
penetrando. Levante as mãos em cima da cabeça e grite: “Estou livre da inversão”. Dê
um pulo e grita AAAH! Vem de dentro. O grito é mágico. Sai como um sopro.
Carrega as impurezas das células. Limpa o corpo. (Júlio e ela gritam) Estou livre da
veadagem. (Pulam) AAAH!
O telefone toca.
Voz – Camilo? Desculpe-nos o incômodo. O Julinho está bem?
Camilo – (Tirando a peruca, o vestido e todos os apetrechos) Sua mãe. (Para o
telefone) Não há incômodo nenhum. Ele está ótimo. Estou lhe dando um curso
completo.
Voz – Curso de quê.?
Camilo – (Engasgando-se) De direito civil. (Suspirando) Você vai falar com ele.
Júlio – (Querendo rir). Estou bem. Meu tio é muito divertido. É nosso primo eu
Voz – Sei. Camilo sempre foi muito brincalhão. Você o chama de tio porque
ele é mais velho.
Júlio – Estou começando a me sentir melhor. (Enquanto Júlio fala, Camilo
arruma um ou outro objeto da sala.)
Voz – Ótimo. Agora me escute meu filho. Ontem. Um amigo de seu pai nos
disse que conhece um psicólogo.
Júlio – Minha mãe. De novo?
Voz – Deixe eu terminar. Você sabe que lhe apoio. Você é, para mim, igual aos
seus irmãos. Como um filho que tivesse tido poliomielite. O que a gente pode fazer.
Até precisa mais carinho. Mais apoio. Seu pai não entende. Mas é preciso tentarmos
tudo. Você mesmo disse que estava disposto a fazer qualquer tentativa para se livrar
“desse negócio”.
Júlio – A senhora se lembra que já fui a vários médicos? Fomos até nos Estados
Unidos. (Camilo fica pasmo. Vai para trás do bar, coloca uma peruca. Imitando a
mãe de Júlio. Júlio olha, ele pergunta por gestos se o cabelo da sua mãe é assim. Júlio,
com as mãos diz que não. Ele vai se vestindo até Júlio aprovar. Peruca ruiva de
cachos, vestido espalhafatoso. O vestido o deixa mais gordo por possuir enchimentos
de espuma. O resultado é um mulher cheia de jóias, vestida de cores berrantes e
gorda. Quando ele está semelhante a ela, começa a dublar a voz dela e fala como se ela
estivesse presente. O telefone está sempre em viva voz.)
Voz – Deixe eu falar Júlio Alcântara de Azevedo Colmeron Junior.
Júlio – (Pacientemente) Fale, minha mãe.
Mãe – Ontem. Em um jantar beneficente da prefeitura, esse nosso amigo que
sabe do caso.
Júlio – A senhora é nervosíssima e contou para todo mundo.
Voz – Assim não é possível. Vocês continuam me acusando de tudo. Eu tenho
coração fraco. Vai chegar o dia que vão me culpar até “desse negócio”. Aliás, seu pai
me disse, outro dia, que a culpada era eu. Como, culpada! Criei vocês todos do mesmo
jeito. Sem distinção alguma.
Júlio – Fale minha mãe. Um jantar beneficente da prefeitura.
Voz – Aí, aquele amigo do seu pai. O que casou com aquela cantora.
Júlio – De ópera.
Voz – Pois é. Ele tem um filho que o caso já estava mais adiantado do que o
seu. O rapaz se vestia de mulher em casas noturnas de má fama. Você nunca fez isso,
não é Júlio Alcântara de Azevedo Colmeron Júnior?
Júlio – Não.
Voz – Você não me mentiria para mim, não é Julinho? Meu Deus! Isso me
mataria. Saber que m e u f i l h o se vestiu de mulher numa casa noturna de má fama.
Você sabe que não tive muitas alegrias na vida. Casei muito nova por imposição de
sua avó. Seu pai, você conhece a natureza dele. Me deu uma grande decepção com
aquela mulher do Rio de Janeiro. Vedete. Atriz de cinema pornô. Miss. Não sei. Fui
obrigada a perdoar por causa de vocês, das fazendas, da fábrica de goiabada. Sua avó
pediu muito que eu o perdoasse. E agora isso. Você sabe que tenho coração fraco.
Você é consagrado a menino Jesus de Praga. O que o menino Jesus de Praga pensaria
lhe vendo, vestido de mulher, dublando Diana Ross, numa casa noturna de má fama,
com o nome de Valerie Perrine? Você, Júlio Alcântara de Azevedo Colmeron Júnior?
Júlio – Eu não me visto de mulher. Nem todo mundo que faz “esse negócio” se
veste de mulher.
Voz – Seu pai disse que termina se vestindo de mulher. Mais cedo ou mais
tarde. Ele tem experiência de vida.
Júlio – É. Mas eu não vou me vestir de mulher. Não vou dublar Diana Ross ou
seja lá quem for e continuarei sendo Júlio porque gosto muito do meu nome.
Voz – Ah! Julinho, que alívio. Já fiz uma promessa a S. Judas Tadeu, o santo
das causas perdidas. Se você se curar desse negócio, eu me visto de roxo por um ano e
vou levar, no centro da floresta amazônica, uma imagem dele do tamanho natural
para uma tribo de índios.
Júlio - Por que no Amazonas?
Voz – Pela distância. Só tem índio na Amazônia e no pantanal tem jacarés. Eu
morro de medo de jacarés.
Júlio – A senhora vai carregando, a imagem nas costas, vestida de roxo, até a
floresta amazônica?
Voz – Não. Vontade eu tenho e você mereceria isso, mas meu coração é fraco.
Vamos levar a imagem no (carro de marca da moda) do seu irmão. Vou toda de roxo e
vestirei essa cor durante um ano. (Camilo troca a roupa por um vestido roxo e
carrega uma imagem de S. Judas Tadeu ou finge carregá-la) O santo para um
empreitada desse porte deve perceber a magnitude da oferta porque sei que vai ser
difícil para ele.
Júlio – (Querendo encurtar o telefonema) Mamãe, o nosso primo é advogado e
recebe chamadas dos clientes. Não devemos ocupar tanto o telefone.
Voz – Vou tentar ser rápida. Na festa beneficente da prefeitura seu pai
encontrou.
Júlio – (Apressando) Aquele seu amigo que casou como uma cantora de ópera e
que teve um filho em estado avançado de. .
Camilo – Pederastia. Veadagem. Bichice.
Voz – É um psicólogo que joga tarô, recomenda alimentação natural. Está
fazendo curas milagrosas desse negócio. O filho desse nosso amigo, que ainda bem
você não conheceu, hoje está dirigindo uma fazenda da família na fronteira com o
Uruguai. Comandando vários peões. Casou-se e já tem dois filhos.
Júlio – Não sei.
Voz – Ele tem a teoria de que esse negócio é falta de uma substância. Qual é
mesmo.? Um metal. Aí ele faz o seu mapa astral e vai lhe administrando um extrato
importado dessa substância. (Lembrando-se) Marcassita. Na terceira semana, o filho
do amigo se seu pai, jogou fora as roupas femininas. Na quarta, arranjou uma
namorada e, um mês depois, estava casado. (Ansiosa) Prometa que vai consultá-lo.
Prometa.
Júlio – Falaremos mais tarde sobre isto.
Voz – Prometa. Prometa. Uma consultinha mais.
Júlio – Vamos ver.
Voz – Sei que não vai me decepcionar. Vou dar tempo para você procurar esse
médico. Mas, para sua mãe dormir tranqüila. Você nunca se vestiu de mulher não é
meu filho? Você não! Sua mãe faz meditação transcendental. Tem intuição. Sabe de
tudo, Julinho.
Júlio – Benção, mãe.
Voz – Deus lhe abençoe.
Ele para de telefonar. Fica quieto. Chora baixinho sem escândalo. Levanta-se,
entra no quarto e fecha a porta. Camilo tenta abrir. Bate na porta do quarto com
insistência.
Camilo – Deixe de ser complicado. Chore na sala mesmo. Tenho raiva de gente
que chora escondido. Perde o efeito.
Batem na porta. É o garoto.
Camilo – Entre. Entre. (Com ênfase) Foi o menino Jesus de Praga quem lhe
Garoto – Vai topar? (Camilo cochicha no ouvido do menino.)
Garoto – (Bate na porta do quarto) Júlio, Dr. Camilo saiu. Disse para eu lhe
fazer companhia. (Silêncio. O menino espera a resposta. O silêncio continua.)
Garoto – (Bate, novamente, na porta do quarto.) Júlio eu me chamo Marcos.
Sou louro. Olhos esverdeados, (mentindo) 18 anos. (Espera. Júlio não abre.) Jogo bola
no juvenil do (time de futebol famoso. Silêncio.) Vou para a escola de cadetes.
(Silêncio. Falando, vagarosamente e mais baixo colado à porta.) Sou liberal na cama.
Faço tudo. (Júlio abre a porta quase depois de ouvir. Camilo, que estava ao lado da
porta só esperando ele sair, fecha a porta, guarda a chave, empurra o menino, sob
protestos, para a rua e fecha a porta do apartamento. Júlio senta-se no sofá. Camilo,
que fez isso tudo rapidamente, esfrega as mãos uma na outra.)
Camilo – Missão cumprida. Você contou em casa, como? Reuniu a família em
um churrasco, pediu silêncio e disse: “Olha minha gente, não reparem (esfregando as
mãos em júbilo) mas eu sou gay”.
Júlio – (Querendo rir, mas ainda choroso) – Não. Falei para meu irmão.
Camilo – Aquele que lhe trouxe aqui? (falando grosso caricaturalmente) Vai
casar com a parente do senador. Administrar a fazenda. Ter cinco filhos. Ser
amante de atriz de televisão.
Júlio – É.
Camilo – É porque ele não conhece a Ana Paula.
Júlio – Quem é a Ana Paula?
Camilo – Deixa para lá. Aí você chegou para seu irmão e disse: “Sou chegado a
Júlio – Não. Disse que estava com um problema.
Camilo – Problema? Urinário? Otorrinolaringologista? Ginecológico?
Júlio – Não vou contar. Você não está levando a sério (detalhadamente) o m e
p r o b l e m a.
Camilo – (Com voz de machão) Deixe de frescura e vamos logo acabar com esse
negócio de meu problema para lá, problema para cá. Dá azar falar desse jeito.
Problema coisa nenhuma. Conta logo essa novela!
Júlio – Virei para ele e disse: “Estou com um problema”.
Camilo – Já vai de novo com esse negócio de problema.
Júlio – Disse a ele que sentia atração por um colega de escola. Ele, no princípio,
não entendeu.
Camilo – Entendeu sim. Quando ele vier aqui de novo eu apresento a Ana
Paula. Ele nem subiu. Ficou com medo. É sintomático. Hum. Esse pessoal que
tem muito medo. Nunca entende nada. Você diz: sou veado. O que é veado?
Tem que se ter cuidado para sua mãe não ter de fazer duas promessas e ficar
levando santos para tudo que é tribo da Amazônia.
Júlio – Disse que achava que tinha possibilidade de sentir prazer numa relação
com uma pessoa do mesmo sexo.
Camilo – (Abismado) Usou todas essas palavras? Podia ter dito apenas uma.
Júlio – Foi um pandemônio. Ele convocou uma reunião de família. Minha mãe
ficou três dias sem comer, trancada no quarto, chorando. Com muito esforço da
empregada engolia sucos de limas. Meu pai, logo que soube, queria me dar um
tiro. Tive que ficar escondido na fazenda vizinha. Contrariado, então, ele viajou
para o Rio.
Camilo – Sei.
Júlio – Quando eu chegava para almoçar, todo mundo comia calado e não me
olhavam. Foi horrível. Ninguém me olhar. Quando meu pai voltou, eles ficaram
horas conversando. Minha avó Clarice tinha vindo também. Parecia que eu
estava nas últimas. Meu irmão não falava comigo. Quando não tinha jeito,
dizia: “Oi”. Passou a esperar eu sair do quarto para mudar a roupa. Trancava
a porta do banheiro quando ia tomar banho. Depois, minha mãe disse que ele
estava com a alergia a mofo e ia mudar de quarto.
Camilo – Fechação dele.
Júlio – Meu pai tinha deixado de falar comigo e, se eu estivesse, não sentava
mais `a mesa. Eu almoçava antes para não contrariar ele.
Camilo – Porque, se aborrecendo, viajava para o Rio.
Júlio – É. Um dia eu estava almoçando. Chegou e disse: “você vai ao médico
amanhã”. Não podia dizer não. Ele: (imitando a voz grossa do pai) “sua mãe vai
lhe levar”. O médico me receitou uma série de injeções de hormônio masculino.
Camilo – Você tomou?
Júlio – Tinha de tomar.
Camilo – Quando percebem que uma família é rica e ansiosa fazem tudo para
tirar o dinheiro. Quer processá-lo? No mínimo você compra um carro. Você
sentiu alguma coisa?
Júlio – Não senti mudança nenhuma. Apenas ficava.
Camilo – Excitado.
Júlio – É.
Camilo – E o seu colega de escola resolvia?
Júlio – Não. Ele é muito complicado. Ficava em dúvida. Ora queria, ora não
queria. Mas tinha uma rapaz da fazenda que. o senhor sabe. (Envergonhado)
Bem. Eu penetrava ele. Foi a minha salvação.
Camilo – E ninguém desconfiou?
Júlio – Não. Tomávamos muito cuidado. Foi a minha salvação. O remédio me
excitava ou era sugestão não sei. O fato é que ficava subindo pelas paredes.
Camilo – E ninguém desconfiou?
Júlio – Não. Ele é assim. Peão de fazenda do Rio Grande do Sul. Machão. O
senhor não conhece o tipo.
Camilo – Conheço, sim. Muito. Machão. Noivo. Descabaçador de mocinhas.
Mas senta. (Apontando para a platéia) Aí está cheio. É o caso de Ana Paula.
Júlio – Quem é Ana Paula?
Camilo – Deixa para lá.
Júlio – Sempre que dizem à minha mãe que alguém curou alguém disso, ela
quer me levar para uma consulta. Os hormônios não deram jeito. Fui obrigado
a ir a um psicanalista famoso na região.
Camilo – O analista de Bagé?
Júlio – Não. Me deitava no divã. Um retrato de Freud ao lado, na parede. Ele
sentado atrás. Não dizia nada. Calado o tempo todo. Só mandava eu falar tudo
que viesse à minha cabeça. Falava de minha mãe, de meus irmãos. Do gado. Um
reloginho apitava e ele se despedia. Falei do rapaz da fazenda, dos hormônios e
das relações sexuais. Notei que chegou a cadeira mais para frente na outra
sessão. Numa delas, pude sentir a sua respiração na minha nuca. Não tive
coragem de me virar. Ele apertava sempre minha mão na entrada e na saída.
Cada vez mais. Uma vez, disse: “Júlio, você está com dificuldades de ter
insights. Tem um terapeuta americano que está experimentando, com sucesso,
um novo método. Tire a roupa toda. A vestimenta é símbolo de suas
resistências. Assim, mais à vontade, vamos atingir o núcleo dos conflitos que
estão por trás de seus problemas”. Tirei a roupa. Perguntei: “Toda?” “Toda.
Não resista”. Fiquei nu no sofá e ele atrás sentado. Então, eu falando, falando,
tive um início de ereção. Ele levantou-se, sentou-se perto do sofá e, sem dizer
nada, como todo bom psicanalista, colocou meu pênis na boca. Tomei um susto
tão grande que quase perdi o tônus muscular. Mas a sofreguidão do terapeuta.
Camilo – Há muito tempo que não fico sem nada a declarar. (Abre os braços,
faz caretas. Corre pelo palco. Ameaça se jogar no chão. Depois, recuperado)
Você teve um erro primário. Para se dizer à família, tem o momento certo. Só
se diz à família (imitando Júlio) esse tipo de coisa quando você está
independente. Antes, nem morto. E, melhor, quando a família depende de você.
Vamos supor que deu sorte na vida. Está bem. Paga (explicativo e irônico) o c
u r s o d e inglês da sobrinha. Ajuda a aposentadoria do pai. Ou, sendo
médico, advogado, juiz, facilita as maracutaias que eles querem. Atestado
médico falso para faltar trabalho, por exemplo. Você então aluga um
apartamento na cidade e diz coisas vagas como: “Vou precisar de um lugar
sossegado – Deus sabe o sossegado – para trabalhar, estudar.” As pessoas nem
percebem nada. As pessoas só percebem o que querem perceber. Um dia sua
mãe entra no apartamento de repente. Está lá aquele amigo seu. Aquele
amigão. Só de short, dormindo.
Júlio – A Ana Paula?
Camilo – Pode ser. Sua mãe, ou irmã, em pé na porta, com o cheque para a
viagem à Disneylândia nas mãos. Vai achar que o rapaz é um colega seu que
ajudou em um trabalho qualquer até de madrugada e teve de dormir lá. Tudo
normal. Nooormal. Coisa de homem. Fizeram uma farra com as mulheres. O
mulherio! As gatinhas! Que, claro, já foram e ele dormiu lá. Mas vamos supor
que você quer usar de franqueza. Geração atual. Assumido. Tudo explícito.
Transparente. Quer dizer: “Mamãe sou veado. Papai, sou homossexual. Meus
queridos irmãos, sou pederasta”. Sabe o que eles vão lhe dizer? “Deixe disso
Julinho. Você só vive brincando.” Seu irmão para o vizinho: “Desde pequeno
que ele brinca assim. Em nossa família não tem essas coisas”. Você apresenta:
esse aqui é um amigo. Louro, tatuado, musculoso, olhos verdes. semi-
analfabeto. Depois de alguns meses você apresenta outro. Moreno. Cabelos
lisos, pretos. Olhos cor de avelã. (Rapidamente). Musculoso, alto, bonito. Logo
depois de ser apresentado, diz: “Pode me chamar de Índio”. A única frase que
sabe dizer é essa. Apresenta até um negrão, desculpe. Afrodescendente robusto
e todo mundo acha que é só amizade. Sua tia (rapidadmente) que você
empregou o filho, o marido e a cunhada, diz: “Parecem até irmãos”. Você e o
afrodescendente. A depender do valor do cheque, o povo diz: “Não. Não é isso
que dizem os espíritos mesquinhos. Apenas um liberal. Alma grande. Uma
pessoa de idéias avançadas.” A depender do valor do benefício, veado passa
de veado a “liberal” rapidamente. Agora, necessitado, dependendo do c u n h a
d o. Sem condições de a j u d a r e de empregar ninguém, você é a vergonha
da família’, desgosto da mãe, causa da morte da avó, da hipertensão do pai.
Também do casamento desfeito da irmã mais nova e talvez até da inflação, da
decadência do mundo Ocidental, da queda da religião e dos bons costumes.
Você é responsável pela queda do Império Romano e pela volta do anti-cristo.
(Júlio fica triste e ameaça chorar.)
Camilo - Se você chorar de novo, chamo o táxi e lhe mando embora. (Pega o
queixo do outro) Um risinho, um pulinho, aberto a propostas e acordos. Mas só
um compromisso: não ser otário. Ser homem. Todo homem de verdade é forte.
Não é pegar em uns centrimetrozinhos que tira a masculinidade de ninguém.
Até aumenta. (Como se fosse uma citação) Platão. (Mudando o tom de voz,
para distrair o outro. Vai até o bar. Atrás, muda de roupa à medida que vai
falando. Coloca o terno cinza, impecável. O texto vai sendo dito quando vai se
ouvindo a parte orquestral introdutória de La Vie em Rose cantada por Grace
Jones.) Uma ocasião fiz uma coisa que alguns amigos se lembram até hoje.
Existia uma boate gay muito concorrida. E, tempos atrás, às vezes, carros
ficavam parados na porta com senhores circunspectos ao volante, observando.
Muitas vezes eram pais que ficavam à espreita de surpreender um filho
suspeito entrando na boate. Em algumas ocasiões, até detetives particulares
eram contratados pelos pais, noivas, namoradas e esposas. Os freqüentadores
ficaram apreensivos com aqueles carros estrategicamente parados observando
e que depois iam embora furtivamente. Não me conheciam. Toda noite eu ia,
ficava uma meia hora, as vezes mais, e saía. Fiz isso cinco noites. Fui criando a
expectativa. Os freqüentadores se perguntavam: “Quem é?” Surgiram
hipóteses. Que eu era um delegado esperando ver o filho entrar. Um conde
italiano suspeitando do genro. Na sexta noite, a porta da boate apinhada de
gente, abri a porta do carro, desci. (Ele sai de trás bar e desce o degrau. Terno
Cinza, bengala, chapéu e tem nos pés um sapato alto, cor-de-rosa, brilhante
como se estivesse pedrarias. Ouvem-se palmas e ovações da platéia formada na
porta da boate) Me encaminhei para a boate atravessando a rua. (Ela dança e
dubla Grace Jones. O importante é que quando termine de falar inicie a parte
vocal do som que aumenta) Spot só nele, desce que sai do bar e fechando nos
sapatos, para o show. Termina de dublar. Batem à porta.
Camilo – (Vendo uma enorme cesta de garrafas de bebidas, queijos e
conservas. É o menino quem entra atrás da cesta) Deixe alí na mesinha.
(Reconhecendo-o) Você de novo? Como é que conseguiu trazer essa cesta?
Menino – Disse para o rapaz que sou seu sobrinho e morava aqui.
Camilo – Rua! Não adianta, que você é de menor.
Menino – Faço tudo que o senhor quiser. Uma vezinha só.
Camilo – (Empurrando-o e ele indo com dificuldade em direção da porta) Não
pode ser. Um dia depois do seu aniversário você vem comemorar aqui.
Menino – Mas esperar quase um ano todinho?
Camilo – Se você insistir, eu telefono para seu pai. (O menino sai e Baltazar
tranca a porta). Ele me seguiu, descobriu o endereço e fica chateando.
Júlio – E esse presente?
Camilo – Deve ser. (Aproximando-se da cesta e lendo o cartão) Ah! Todo ano
ele me manda essa cesta com uísques, vinhos da melhor qualidade, queijos
finos. Ainda existe gente agradecida na face da terra.
Júlio – Impressionante.
Camilo – Você está morto de curiosidade. Não é o que você está pensando. Já
recebi muitos presentes de admiradores. É. Gordo (tosse) robusto, velho,
barrigudinho, cara não necessariamente bonita, careca mas f e l i c i s s i m o.
Primeiro eu espanto depois eu encanto. (Quando diz que espanta faz uma
expressão corporal e facial de espanto, depois, quando diz encanto, fica todo
derretido.)
Júlio – O senhor faz favor a muita gente?
Camilo – Vez por outra. Não é isso não. Quem me mandou essa cesta é o dono
da construtora Paiacan. Sou o advogado deles. Salvei o velho. Comendador.
Não é comendador coisa nenhuma. Eu chamo e ele gosta muito. No início é
bom, quando não conhece o tipo, meter um doutor. Na intimidade, você o
chama de comendador. Entusiasma. Abre o coração do homem. Ele lhe diz:
“Não sou comendador”. Você rebate: “para mim, é”. Comprou o homem.
Paiacan não tinha nada. Dizem até que dormia de favor em cima de uma
padaria no (bairro popular famoso.) Hoje tem nome em duas escolas públicas.
Escola Municipal Honestino Paiacan. A fortuna dele foi feita com asfalto. Era
mestre de obras. Fundou uma construtora. Alguns dizem que comprou o
diploma de engenheiro no Rio. Não sei. Não entro no mérito da questão. A
fortuna foi com asfalto. Ele cobrava por, se não me engano, 7 centímetros e
botava três. Multiplique por milhares de quilômetros. Uma noite eu ia sair com
a Ana Paula.
Júlio – Quem é a Ana Paula?
Camilo – Deixe para lá. Apareceu aqui o Honestino Paiacan nervossíssimo. O
governador tinha espalhado que iria apurar. Honestino se recusara a colaborar
com uma soma enorme para a campanha política do filho do governador. Era
época de eleições. Sua excelência resolveu então cobrar a parte dele e veio com
ao história da companha do filho. Mandei negociar a soma da doação para a
candidatura do rapaz. Honestino me disse: “Impossível. Ele já tem um
financiamento espetacular de um rede de supermercados e dos shoppings.
Quer beber meu sangue. Disse que vai fazer uma creche da casa onde moro.
Diante da gravidade da situação, precisei de uma boa soma para levantar um
dossiê completo do governador. Trabalho assim. A informação é fundamental.
Ninguém dá informação de graça. Se precisar de um documento, aí é que entra
dinheiro pesado. Tenho uma equipe boa. Investigadores de primeira qualidade.
Com entrada em motéis, edifícios de apartamentos. São discretíssimos.
Máquinas de retrato minúsculas. Importadas. O diabo a quatro. Ficha sexual
do governador: limpa. Só comia a esposa e, mesmo assim, só de três em três
meses. Sublimava, ganhando dinheiro, fazendo política e perseguindo os
outros. Ficava de pau duro quando exonerava alguém. Não tinha menor, cabra,
galinha, travesti. Nada que pudesse no dar um argomentozinho para um
acordo. Apareceu um jornalista querendo fazer escândalo com os centímetros
do asfalto. Sugeri o Honestino. “Contrate ele como assessor de imprensa de sua
empresa”. O jornalista tinha uma amante de 15 anos, gastadeira. Cobrou
barato: 350 dólares por mês. Jornalista é barato. Em vez do escândalo, saiu
uma entrevista de Honestino sobre suas atividades sociais. O Natal dos
velhinhos. A obra da Igreja Matriz da qual era conselheiro. Mas a sorte nos
sorriu. Depois de uma semana, tivemos nas mãos um documento da
porcentagem do governo em obras feitas só para dar dinheiro a todo mundo
chegado ao governador. Todos mamaram. Empreiteiros. Prefeitos. Obras sem
necessidade nenhuma para a população, mas extremamente necessárias para o
governo. A construtora principal era do cunhado de sua excelência, casado com
a caçulinha. A irmã menor. Documento quente, comprado a dólar. Tínhamos a
base do acordo. Advocacia é acordo. Neste caso, foi tão bom que Paiacan foi
incluído nas empresas que trabalhavam para prefeitura. Hoje é nome de
escola. Nome de escola, Julinho. E o Dr. Camilo agraciado, claro, com uma
série de presentes além do bom pagamento dos honorários. Facilidades para
compra de apartamentos da Paiacan. É essa gentileza de Honestino que me
cativa. Disseram para ele que eu gostava de oferecer uísque ao pessoal do
juvenil do (time de futebol famoso.) É mentira. A meninada toma mesmo é
bebida barata com refrigerante. Mas Honestino, sensível a esse meu hábito,
não me deixa falta o que acha ser o uísque dos supostos rapazes. Numa outra
oportunidade estarei pronto para servi-lo. Porque os que me procuram são
tantos que não posso atender a todos. Freiras. Padres. (Baixando a voz)
Militares. As melhores famílias. Gente com nomes de escolas, ruas,
monumentos em praças. Gente fina. Exemplos morais. Educadores de uma
geração inteira. Latinistas. Meditações transcendentais. Minds Powers.
Quando me aposentar você vai ser meu sucessor.
Júlio – Queria estudar veterinária.
Camilo – (Fazendo escândalo fingido). Cuidar de vaca. Boi. Você é
abobalhado? (Botando as m
ãos nos ombros de Júlio). Essa é que é a vida
real e você preocupado com veadagenzinha boba. Educativa até. Platão.
Telefone toca. Júlio Atende.
Voz de homem efeminado – Quem está falando? É a Ana Paula?
Júlio – Não. É o primo do Dr. Camilo.
Voz – Você é aquele forte? Que foi Dragão da Independência? Louro. Que o
presidente.
Júlio – (Sério) Não.
Voz – Diga a seu primo que encontrei um vestido ótimo. Se ele quiser eu
Júlio – Vestido?
Voz – Para a festa de hoje à noite.
Camilo – (Percebendo, afasta Júlio) Sim. Sim.
Voz – Quem atendeu disse que era seu primo.
Camilo – É. Você sabe que não vem ninguém em minha casa para encontros
amorosos.
Voz – Humm. Prudência ou indireta para mim.
Camilo – Tenho um compromisso comigo mesmo de não ser otário. Se o Papa
acompanhado daquele Cardeal americano que protegia pedófilos baterem
aqui, não entram.
Voz – E onde fica a psicologia? O conhecimento das pessoas? A credibilidade
das pessoas?
Camilo – Você não é psicóloga. As pessoas não têm credibilidade. Toda vez que
você me liga tenho ao leve impressão que estou ouvindo São Pedro dizendo que
a conta de telefone está vindo muito alta devido às suas ligações para a Terra.
Ou é Satanás reclamando da conta? (Desliga)
Júlio – Nós temos algum primo que é Dragão da Independência?
Camilo – Não. Ele está tentando adivinhar como é você. Se ela soubesse. sem
Júlio – Posso lhe perguntar uma coisa?
Camilo – Lá é assim? Toda essa cerimônia? Pergunte o que você quiser. Hoje,
no Brasil, todo mundo pergunta tudo a todo mundo, meu filho. Você não é
brasileiro? Não torce pela copa, não dança no Carnaval e rouba o próximo?
Em um país da Europa, até bem pouco tempo, tinha no sanitário dos homens
logo no aeroporto: “Onde nós chega, nós avacalha”. O que é que você quer
saber? Diga? Pode perguntar para o Titio Camilo.
Júlio – Seu amigo disse vestido.? O senhor se veste de mulher?
Camilo – Me visto sim. Basta precisar e eu me visto de mulher, de macaco,
onça, dragão, até de paletó e gravata para ir ao Fórum.
Júlio – (Cai no sofá deprimido.) Não acredito.
Camilo – Deixe de besteira. Todo mundo se veste de mulher. A única coisa
decente neste país é o peito de um travesti. A maluca botou peito por inocência.
(Para a platéia) A maioria aí já se vestiu de mulher. Brasileiro gosta muito
disso. Dá risada. (Para a platéia) Quem ainda não se vestiu de mulher? Deixe
de bobagem. No Carnaval. Aquele bloco. Para esculhambar. O pior é o
rebolado deles. Eu fico uma mulher séria. Não sei rebolar. Advogado com
artrose. Não consigo rebolar. Esse nariz não ajuda muito na transformação.
(Para a platéia) Tem uns aí que, quando tiram para esculhambar, exageram.
(Para um espectador imaginário) O que? Você não? Se eu for aí já levo o
vestido e a peruca e você vai ter de vestir aí mesmo. (Para Júlio) É de
brincadeira que a gente se veste de mulher. Molequeira. Você já pensou, um
velho como eu, das melhores famílias, robusto. Gordo não assumo de jeito
nenhum. Cara esquisita mas simpaticíssima, vestido como a mulher gato de
Batman? E você da irmã mais velha da gata borralheira? Porque de
Cinderela, com toda boa vontade, parentesco que nos une, tentativa de suicídio
e tudo, não dá. Primeiro eu espanto depois eu encanto. Você espanta e não
encanta. Precisa aprender a encantar depois do espanto. Esse é o grande
truque da vida.
Júlio – Eu não.
Camilo – (Com as mãos na cintura e batendo o pé direito repetidamente no
chão) Não, o quê? Vai sim. De longo e tudo.
Júlio – O senhor quer matar minha mãe.
Camilo – Por isso que você tentou suicídio, sua anta. Se estivesse aqui ela iria
também para a festa só que fantasiada da bruxa da Branca de Neve. Ana
Paula, centro e vinte quilos de músculos, segurança do governador, terceiro
dan em artes marciais, campeão Sul Americano de vale tudo vai vestido de
Madame Butterfly. Você. Isto daí. Que Deus me perdoe, criando
dificuldade.
Júlio – Por que você chama ele de Ana Paula?
Camilo – Ganhou esse nome de Ana Paula porque quando se entusiasma com o
sexo, de suspiro em suspiro, de aperto em aperto, de gemido em gemido, pede.
Pede, como uma coelhinha de calendário. “Me chama. Me chama de Ana
Paula”. É todo enferrujado. Você não conhece certos homens que possuem
pintas e em geral o cabelo é avermelhado.? Ele tem mania de pedir para a
pessoa contar todas as pintas de seu corpo. Claro que é impossível. Então você
começa a contar pelas costas.
Júlio – Nos centímetros tem pinta?
Camilo – Tem pinta em tudo que é canto. Você vai contando. Cinqüenta,
cinqüenta e um. Embola a língua ou fica calado como estivesse contando em
silêncio. Depois trezentos e quarenta e seis.
Júlio – Ele tem trezentas e quarenta e seis pintas?
Camilo – Tem nada, Julinho. Você é abobalhado? Ninguém contou tudo. No
meio ele mesmo acaba a contagem e parte para a verdade. Dizem que teve um
deputado que conseguiu contar todas com uma máquina de calcular.
Júlio – Eram trezentas e quarenta e seis?
Camilo – O deputado não revelou, abobalhado.
Júlio – Mas eu nunca me vestirei de mulher.
Camilo – (Carinhoso) Julinho, vem para o titio, vem. Deixa eu explicar para
você meu filho. É uma brincadeira inocente. nada mais inocente do que isso.
Todo mundo brinca, se distrai. Minha pressão é de 12 por 8.
Júlio – Vestir-se de mulher abaixa a pressão?
Camilo – Contribui e muito. Ia apresentar um estudo no último congresso de
cardiologia. Não sei porque não aceitaram. Tem uns ali que sei que já
vestiram um bustierzinho.
Julio – Mas minha mãe morreria. Vovó Clarisse.
Camilo – (Voz de macho) Você começou a me irritar. Você não sabe de nada.
Não conhece como as coisas são. E, por isso mesmo, quase morre porque o
mundo se encarrega de matar os otários. Você pensa que sua avó Clarice
amealhou toda aquela fortuna como?
Júlio – Casando com um importador inglês. Minha mãe tinha, no nome de
solteira, MacDouglas.
Camilo – É isso que elas dizem. Tinha realmente o inglês. Inglês coisa
nenhuma. Escocês. Que não passava de um gigolô barato. Jogador. Bebia até
perfume se não encontrasse álcool. Ela enchia a casa de bebida para ele não
cair na rua porque era pesado e dava um trabalho danado para carregar.
Júlio – Elas dizem que a fortuna veio da firma de importação.
Camilo – A firma era biombo. O dinheiro veio da associação pró infância que
cuidava das crianças abandonadas.
Júlio - Mentira.
Camilo – Há algum tempo, eu estava recém formado e cuidei de uns problemas
com os papéis dessa suposta firma de importação cuja finalidade era lavar o
dinheiro. Na vida, quatro pessoas sabem das coisas. Médico, delegado de
polícia, advogado e puta aposentada, dona de bordel.
Júlio – Não acredito de jeito nenhum! Minha mãe não sabe disso.
Camilo – É quem mais sabe. Ajudou a mãe desde o começo e com uma
habilidade, de fazer inveja a Al Capone. Ela pequenininha, vestia-se de Shirley
Temple e acompanhava a mãe. Sua avó Clarice percebeu que o negócio dava
dinheiro quando precisou arrecadar uma soma para abrigar uma população
carente vítima de uma enchente. Com aquela cara enorme que ela tem,
educação esmerada, ficava séria, diante do comerciante, governador, prefeito
ou empresário. Toda mulher com cara de onça é esperta. Ela tem essa
habilidade que é fantástica. Veste-se muito bem, conversa tudo, menos o que
vem pedir, e, quando está se despedindo, dá a facada e então fica séria. Muda.
Sem nenhuma expressão. Com os olhos fixos na vítima. Arrecadou fortunas.
Devendo até na venda do espanhol da esquina, então ela, com toda sua realeza,
foi também pagando suas contas. Descobriu uma mina de ouro. Deu metade e
um quarto às vítimas da enchente. Nisso ela é perfeita. Não tem concorrente.
Os concorrentes não têm pedigree. Ficam com a metade e os que não têm berço
mesmo, até com metade e mais um quarto. Ela, não. Só fica com um quarto. O
resto emprega para ajudar os necessitados. Abriu a casa do menor. E, para não
ficar sem explicação a mansão, os carros novos na garagem, sua mãe estudando
na Europa, criaram a firma do inglês de importação e exportação. Só
importava uísque para o consumo próprio. Hoje, se ela perceber o que está na
moda você e todos nós descendentes dela não precisaremos mais trabalhar.
Ajudar negro, índio, mulher espancada, baleias desaperecidas. Menor
abandonado é um clássico. Se entrar no ramo de prevenção a AIDS, (vindo
para a platéia) quero entrar no testamento da titia de qualquer maneira.
Júlio – (Estupefato) Traga o vestido. (Chegando até perto dele) Mas não traga
um vestidinho comum. Recatado. Eu quero um vestido de rumbeira. Quero
tirar fotos. Espere aí. Vou de Shirley Temple. Mandarei as fotos para ambas.
Quero ver se ela vai se vestir de roxo. E tem mais. Processe o filho da puta do
médico que me receitou os hormônios. Na próxima festa, quero ir no meu carro
comprado com o dinheiro da indenização. E nesta quero sair daqui do prédio.
Camilo – Montada.
Batem na porta. O menino entra.
Camilo – (Com raiva) Menor não. Já lhe disse. Vou ligar para seu pai agora
mesmo. Já descobri o telefone de sua casa, sei onde você mora e dessa você não
escapa. (O menino fica em pé, desafiando.) Alô. Favor chamar Dr. Josemar
Freitas.
Voz – Alô ? (O menino, quando ouve a voz do pai, esconde-se atrás do bar.)
Camilo – Aqui quem fala é o Dr. Camilo.
Voz de homem – Sei, sei. O meu filho fala muito do senhor.
Camilo – (Cara de estupefação. Tossindo) Bem. bem. Eu conheço a lei e ele é
Voz de homem – Eu entendo. Mas pode atendê-lo. Ele já tem 17 anos e sete
meses. Dei um documento assinado por mim, com firma reconhecida, que
tenho ciência e permito sua amizade com ele seja de que natureza for.
Qualquer dia desse vou até aí para conversarmos. Marquinhos me disse que o
senhor tem um sobrinho.
Camilo – Terminou de chegar. Pode aparecer quando quiser. (Desliga.
Abismado.) Não tenho nada a declarar.
O palco fica escuro. Ouve-se a música da Twenty Century Fox e uma
luz só no rosto do menino, vestido de Marilyn Monroe. É importante a
semelhança com a atriz. A indumentária deve incluir luvas longas e vestido
igual aos usados nos filmes. Ele dubla “Diamonds Are a Girls Best Friend” de
Leo Robin e Jule Styne. É importante que o contraste do tipo másculo do
menino em toda peça fique evidente com a perfeição da imitação de Marilyn
Monroe e da dublagem assim como do figurino hollywoodiano. Quando o
menino termina a dublagem, some do palco, muda de roupa, rapidamente para
a que usou em toda peça. Enquanto isso, aparece, vindo do quarto, Julinho
vestido de Shirley Temple. Camilo, também caracterizado como uma velha
dama, vai até o aparelho de som e coloca: “Nós Somos as Cantoras do Rádio” de
Lamartine Babo, João de Barro, Alberto Ribeiro. Ensinando Júlio a cantar e
dublar, repete o início da musica algumas vezes. Aparece o menino vestido de
homem. O três dançam e dublam “Nós Somos as Cantoras do Rádio” . A luz vai
apagando aos poucos.

Source: http://www.teatroliper.ufba.br/A%20Alegre%20Vida%20de%20Tio%20Camilo.pdf

Pep-training shulungsliste

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